21/01/2021
Epidemiologista que alertava contra a Covid-19 perde o pai que “preferia acreditar no WhatsApp”
Desde os primeiros casos confirmados do novo coronavírus no
país, no fim de fevereiro de 2020, a enfermeira e epidemiologista Maria
Cristina Willemann tem alertado os moradores de Santa Catarina sobre a
importância de adotar medidas para conter a propagação do vírus. Com mestrado e experiência em epidemiologia (área que estuda
o processo de doenças em populações e propõe estratégias para controlá-las),
ela tem sido entrevistada por diversos veículos de comunicação desde o começo
da pandemia. Em 10 de agosto, por exemplo, Maria Cristina fez um alerta
sobre o avanço do novo coronavírus em Santa Catarina em uma reportagem do Jornal
Hoje, da Rede Globo. "É importante que a população entenda que nós ainda
estamos em franca expansão da pandemia em nosso Estado e é preciso tomar
cuidado. Não frequentem locais que não estejam adequados. Não frequentem locais
onde pode haver qualquer aglomeração de pessoas", disse em entrevista ao
telejornal. No dia seguinte ao alerta dado no telejornal, a profissional
de saúde vivenciou as consequências da covid-19 em sua própria família: o pai
dela, o aposentado Cesar Willemann, de 65 anos, foi internado em estado grave
com a doença. Dias depois, ele morreu. Para a epidemiologista, a situação do pai ilustra os riscos
da falta de prevenção à doença causada pelo novo coronavírus. Segundo ela, o
aposentado contraiu o Sars-Cov-2 (nome oficial do vírus) porque não seguiu as
orientações sanitárias dadas pela própria filha. "É muito frustrante saber que estou desde o começo da
pandemia trabalhando para evitar o adoecimento das pessoas, mas não consegui
convencer o meu próprio pai a seguir as medidas adequadas. É um misto de frustração
e raiva", desabafa Maria Cristina em entrevista à BBC News Brasil. A desinformação
durante a pandemia Nas primeiras semanas da pandemia, em março, Cesar ficou
isolado em casa junto com a esposa, em Lages (SC). Maria Cristina conta que a
comoção mundial em decorrência do novo coronavírus preocupou o pai. Nos meses
seguintes, porém, ele voltou a sair de casa. "Aos poucos, ele foi voltando à rotina normal. Como ele
saía de casa várias vezes e não pegava o coronavírus, pode ter pensado que não
pegaria em nenhum momento. Então, cada vez mais foi voltando às atividades de
antes", diz a epidemiologista. Maria Cristina acredita que notícias negacionistas sobre o
novo coronavírus, compartilhadas massivamente no WhatsApp e nas redes sociais,
fizeram com que o pai duvidasse dos riscos da covid-19. "Acho que muitas pessoas morrem por pensar, como o meu
pai, que não vai acontecer com elas. Essas pessoas podem pensar que estão
protegidas de alguma forma, acreditam que algum tratamento funciona ou pensam
que há uma imunidade de rebanho que irá protegê-las", declara a
epidemiologista. Em relação à imunidade coletiva da covid-19, pesquisadores
apontam que ela somente existirá quando grande parte da população for vacinada
contra o novo coronavírus. E em relação aos tratamentos que circulam pela internet e
costumam ser defendidos até mesmo por profissionais de saúde, entidades médicas
apontam que não há, até o momento, remédio eficaz para a covid-19. Os
medicamentos recomendados por especialistas no momento, que não incluem
cloroquina, ivermectina ou azitromicina, servem somente para amenizar os
sintomas, como febre ou tosse. César acreditava que a cloroquina, defendida intensamente
pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo Ministério da Saúde, poderia salvá-lo da
covid-19. Porém, a filha tentava alertá-lo que os estudos comprovam que o
medicamento não ajuda pacientes com o novo coronavírus e explicava que as
entidades médicas não recomendam o remédio contra o Sars-Cov-2. "Por mais que eu falasse tudo pelos critérios científicos,
ele preferia acreditar nas conversas dos amigos, nas mensagens de WhatsApp...
Ele pensava: se para tudo tem um tratamento, por que para a covid não vai
ter?", relata a epidemiologista. "Ele recebia as informações falsas, como sobre a
cloroquina, pelo WhatsApp, que era o meio de comunicação que ele mais usava.
Por mais que dissessem na televisão que não tinha evidência científica sobre a
cloroquina, ele preferia acreditar no WhatsApp", acrescenta Maria
Cristina. Segundo a epidemiologista, o aposentado não se considerava
um fiel seguidor do presidente. "Mas como a maioria da população, o meu
pai acreditava nele (Bolsonaro). Ele via as coisas que o presidente falava em
defesa da cloroquina e acreditava", diz. Para ampla maioria dos especialistas, Bolsonaro atrapalhou o
combate à pandemia. Desde os primeiros casos no país, o presidente mostrou-se
contrário às medidas recomendadas por especialistas para conter a propagação do
coronavírus. Por diversas vezes, ele criticou o isolamento social, atacou o uso
de máscaras e desdenhou da CoronaVac, que nesta semana se tornou a primeira
vacina a ser aplicada no país. Levantamentos apontam que as medidas de isolamento social
foram seguidas em menor escala por aqueles que deram ouvidos à postura
negacionista de Bolsonaro. Um exemplo dessa situação foi demonstrado no estudo
"Ideologia, isolamento e morte: uma análise dos efeitos do bolsonarismo na
pandemia de covid-19", abordado em reportagem da Folha de S.Paulo em
meados do ano passado. O levamento, divulgado em junho por pesquisadores da
Universidade Federal do ABC (UFABC), da Fundação Getúlio Vargas e da
Universidade de São Paulo, apontou que a taxa de isolamento social diminuiu e
mais pessoas morreram proporcionalmente nos municípios que mais votaram em
Bolsonaro em 2018. O bar do dominó Na região em que morava, César era considerado um dos
melhores jogadores de dominó. Durante a pandemia, conta Maria Cristina, ele
continuou frequentando um bar para praticar a atividade. A filha acredita que
foi justamente isso que fez com que o idoso contraísse o coronavírus. "Tenho plena convicção de que ele contraiu o
coronavírus no bar. Soube que muitos frequentadores do local também adoeceram
no mesmo período, porque (entre o fim de julho e o começo de agosto) foram
semanas de altíssima transmissão do vírus em Lages", diz a
epidemiologista. "O bar era um local fechado, com algumas janelas
abertas. Havia uma placa que dizia que o uso da máscara era obrigatório, mas
não era isso que acontecia na prática, porque as pessoas bebiam e jogavam ao
mesmo tempo. O meu pai, com certeza, jogava sem máscara", acrescenta Maria
Cristina. Ela comenta que ainda que estivesse com máscara, Cesar não
se preocupava em usá-la adequadamente. "Ele se sentia incomodado e deixava
o nariz pra fora", relata. Em 9 de agosto, o aposentado passou o Dia dos Pais sem
abraçar as duas filhas. Ele ficou isolado, porque estava com sintomas da
covid-19, como dores fortes nas costas e cansaço extremo. Mas o aposentado não
reclamou da situação para Maria Cristina. "Talvez encarar a filha
epidemiologista, que tanto assustou, brigou, gritou, chorou e implorou para que
ele se cuidasse não estava nos seus planos", desabafa a epidemiologista. A mãe de Maria Cristina também apresentou sintomas da
covid-19, mas não desenvolveu quadro grave. "Os meus pais não contavam
muito sobre o que faziam, mas eles já estavam indo a vários lugares. O meu pai
era o que mais saía. Eles não me falavam sobre isso porque tinham medo de que eu
brigasse", diz a epidemiologista. 'Frustrada
profissionalmente e individualmente' Os sintomas de Cesar se intensificaram em 11 de agosto. Ele
precisou ser internado. Os exames apontaram que quase 50% dos pulmões dele
haviam sido comprometidos. Posteriormente, os médicos confirmaram que ele havia
sido infectado pelo novo coronavírus. A situação do idoso se agravou. Maria Cristina comenta que o
pai chegou a criticar o fato de não ser tratado com a cloroquina. "Não
usaram a cloroquina com ele porque não havia evidência sobre a eficácia dela.
Adotavam apenas como teste, em alguns casos, e o meu pai não tinha boa condição
de saúde para isso (para usar o medicamento), porque ele consumia muita bebida
alcoólica e tinha comprometimento no fígado", relata. Além de ser idoso, César também era obeso e tinha pressão
alta — fatores de risco para a covid-19. "Mas ele poderia viver muito
tempo ainda, caso não tivesse sido infectado pelo coronavírus. Esses problemas
de saúde que ele já tinha não o levariam assim, tão novo, tão rápido e tão
friamente. Os pais dele têm 95 (o pai) e 89 (a mãe) e ainda estão aqui",
diz a epidemiologista. Dias depois de ser internado, o idoso foi intubado na
Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Por 12 dias, ele lutou pela vida. "Eu
tinha esperanças e rezava para que ele se recuperasse. Porém, era só analisar
os dados para saber que ele tinha todos os fatores de risco de óbito: idade de
risco, homem, obeso, comorbidade e comprometimentos causados pelo consumo de
álcool", relata Maria Cristina. Em 25 de agosto, o aposentado morreu. Ele foi enterrado em caixão fechado, sem direito a velório
ou qualquer despedida — medida adotada para evitar a propagação do coronavírus. "Os amigos que ele tanto cultivou não se despediram. E
eu também não falei com ele. Sinto que ele se foi muito bravo comigo, por eu
ter feito um estardalhaço para que ele fosse internado, mesmo ele não querendo
e achando que estava bem. Mas eu sabia que ele estaria bem assistido na
internação. Porém, isso não bastou (para salvar o idoso)", emociona-se
Maria Cristina. O último encontro dela com o pai foi em julho, quando a
epidemiologista, que mora em Florianópolis, passou duas semanas em isolamento
junto com o filho e o marido para que pudesse viajar para Lages, na serra
catarinense. Apesar dos impasses em relação aos cuidados referentes à
covid-19, Maria Cristina comenta que o pai demonstrava orgulho da carreira que
ela seguiu na área da saúde. Ela, que hoje tem 35 anos, se formou em Enfermagem
aos 22, depois se especializou em epidemiologia e hoje é considerada uma das
referências na área em Santa Catarina. "O meu pai sempre gostava de falar de mim para as
outras pessoas. Mas ele não entendia direito o que era a epidemiologia e me
pedia para escrever certinho o que era para poder explicar para os
outros", relembra, emocionada, a profissional de saúde. Ao falar sobre as circunstâncias da morte do pai, Maria
Cristina afirma que se sente frustrada "profissionalmente e
individualmente". "Do que adianta estudar tanto e não conseguir
evitar que ele adoecesse?", se questiona a epidemiologista.
"As desinformações nas redes deturpavam todas as
medidas que eu falava para o meu pai adotar. Não dá para competir (com fake
news). As pessoas acreditam naquilo que querem. Essa confusão de comunicação de
risco que temos no Brasil matou o meu pai", diz Maria Cristina. BBC News
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