25/01/2021
Tribunal Penal Internacional recebe denúncia contra Bolsonaro por assassinato, transferência forçada e perseguição a povos indígenas
O avanço do desmatamento e das queimadas na região
amazônica, os ataques do governo Bolsonaro às populações indígenas e o
desmantelamento de agências governamentais, como o Ibama e o ICMBio, motivaram
a apresentação de nova denúncia contra o presidente brasileiro ao Tribunal
Penal Internacional (TPI). Feita em nome dos caciques Raoni Metuktire e Almir
Suruí, a solicitação pede que a procuradora do TPI, Fatou Bensouda, abra
inquérito preliminar para investigar a responsabilidade de Jair Bolsonaro e
membros de seu governo. A denúncia aponta o mandatário brasileiro como responsável
pelo assassinato, transferência forçada e perseguição contra povos indígenas. A
representação também denuncia a política de Bolsonaro em relação ao meio
ambiente, pleiteando o reconhecimento do ecocídio — destruição do meio ambiente
em nível que compromete a vida humana — como um crime passível de análise pelo
TPI. “Nós temos documentação exaustiva que prova que Bolsonaro
anunciou, premeditou essa política de destruição total da Amazônia, a
comunidade protegida pela Amazônia”, afirma o advogado francês William Bourdon
em entrevista à Agência Pública. Bourdon foi quem formulou a denúncia, em
associação com ONGs e outros advogados. “Ele implementou essa política desde a
tomada do poder, com uma multiplicação de decisões, de iniciativas não só para
destruir todas as políticas históricas de proteção dos [povos] indígenas, de
apoio humanitário, que vêm sendo realizadas há muitos anos… Mas ele se
comprometeu, endossou publicamente uma política de destruição da Amazônia e de
sua comunidade”, diz. O Tribunal Penal Internacional com sede em Haia, na Holanda,
é o primeiro organismo internacional permanente com competência para julgar
autores dos crimes de maior gravidade, incluindo genocídio, crimes contra a
humanidade e crimes de guerra. A maioria dos casos analisados pelo órgão
costumam envolver conflitos armados e violência física contra a população. O TPI pode exercer sua jurisdição em três situações: quando
um Estado Parte faz uma denúncia; quando o Conselho de Segurança da ONU faz uma
denúncia; ou por iniciativa própria da procuradora do Tribunal, que pode
iniciar inquérito. No caso da comunicação apresentada hoje, a intenção é que a
procuradoria do órgão internacional analise se os fatos apontados estão dentro
da jurisdição do TPI e se justificam a abertura de investigação. A denúncia se soma a uma série de outras representações
contra o presidente brasileiro apresentadas ao Tribunal Penal Internacional. Em
abril de 2020, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia denunciou
Bolsonaro por crimes contra a humanidade pela condução do mandatário durante a
pandemia da covid-19. Representações no mesmo sentido foram apresentadas pelo
Partido Democrático Trabalhista (PDT) e por dezenas de sindicatos de
profissionais de saúde. Antes, em novembro de 2019, a Comissão Arns e o Coletivo de
Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) denunciaram Bolsonaro por incitar o
genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil.
Em dezembro do ano passado, a procuradoria do TPI informou que iria prosseguir
com a análise da denúncia. Foi a primeira vez que uma comunicação contra um
presidente brasileiro “avançou” perante o organismo. A maioria das
representações apresentadas ao Tribunal Penal Internacional são liminarmente
eliminadas. Para o advogado William Bourdon, Bolsonaro “anunciou,
premeditou e implementou uma política sistemática de destruição” e a justiça
brasileira não vem sendo eficaz em frear essas ações. “É muito mais do que
assédio, é muito mais do que uma política cínica de desprezo; é uma política de
destruição, pela interação de muitos crimes. E é a interação de todos esses
crimes que caracterizam os crimes contra a humanidade”, explica. Confira a entrevista a seguir: Pergunta. Quais os
pontos mais críticos da política indígena de Bolsonaro e que motivaram a
apresentação da denúncia? Resposta. Claro que existem muitos critérios, mas de todos
eles, o mais importante é que as manifestações de crime contra a humanidade
sejam inspiradas por uma clara vontade política. Nós temos documentação
exaustiva que prova que Bolsonaro anunciou, premeditou essa política de
destruição total da Amazônia, a comunidade protegida pela Amazônia. Ele implementou essa política desde a tomada do poder, com
uma multiplicação de decisões, de iniciativas não só para destruir todas as
políticas históricas de proteção dos [povos] indígenas, de apoio humanitário,
que vêm sendo realizadas há muitos anos… Mas ele se comprometeu, endossou
publicamente uma política de destruição da Amazônia e de sua comunidade. Então,
não se trata apenas de aceleração de queimadas, é uma política de transferência
forçada de população, roubo de terras, poluição, execução de militantes. Os crimes contra a humanidade desde a Segunda Guerra
Mundial, após os Julgamentos de Nuremberg, foram considerados extermínios e
execuções em massa. Nestas últimas décadas, com o surgimento de uma nova
política de destruição de pessoas, o direito evoluiu, está em evolução
permanente. É por isso que nos referimos a isso em nossa comunicação, algumas
manifestações públicas do escritório da procuradora do TPI, nas quais foi dito
claramente que um grande crime ecológico — o ecocídio — poderia ser considerado
um crime contra a humanidade. Deve ser uma política sistemática e generalizada.
E está claro que Bolsonaro anunciou, premeditou e implementou uma política geral
sistemática de destruição. Portanto, é muito mais do que assédio, é muito mais do que
uma política cínica de desprezo; é uma política de destruição, pela interação
de muitos crimes. E é a interação de todos esses crimes que caracterizam os
crimes contra a humanidade. Claro, com o contexto de destruição de agências de
proteção, de demissão de pessoas que deveriam ter o mandato de proteger essas
comunidades, etc. Tudo isso está descrito em nosso documento. P. Como você disse, a
denúncia aponta que Bolsonaro cometeu delitos enquadrados como crimes contra a
humanidade. Pode explicar por que consideram que as ações de Bolsonaro se
enquadram dessa forma? R. Está absolutamente claramente listado, documentado. Devo
acrescentar que pela grande responsabilidade, eu e toda minha equipe dedicamos
mais de um ano para elaborar esse documento e para recolher todas as
evidências. Agradeço muito a minha equipe e colegas brasileiros, ONGs
brasileiras, ONGs francesas que ajudaram minha equipe, meu escritório de
advocacia, a elaborar este documento. Esses crimes são listados no documento como roubo de terras,
transferência forçada de população, perseguição política, assassinato. Eles
estão previstos no artigo 7º do Estatuto do TPI e consideramos que o que
aconteceu no Brasil desde a posse de Bolsonaro pode ser caracterizado como
crimes contra a humanidade. P. As ações de
Bolsonaro em relação à pandemia de covid-19 impulsionaram a apresentação da
denúncia? R. A política cínica do Bolsonaro não é em si um crime
contra a humanidade. Nós nos referimos [na denúncia] à pandemia e à forma como
Bolsonaro demonstrou um desprezo total pela vida, pelo direito dos cidadãos de
serem cuidados, como um elemento contextual; em si não é um crime contra a
humanidade, é um elemento contextual que ilustra e reforça os crimes contra a
humanidade. Me disseram que uma ONG brasileira já apresentou denúncia ao
Tribunal Penal Internacional, mas não conheço o conteúdo deste documento. Sei
que foi um documento que se referia essencialmente à forma como Bolsonaro se
recusou a proteger a população contra a pandemia. Não conheço o documento, mas,
a meu ver, a maneira como o Bolsonaro não protegeu a população em si,
estritamente do ponto de vista jurídico, não pode ser considerada um crime
contra a humanidade. Mas é um elemento contextual que demonstrou o alto grau de
desprezo de Bolsonaro pelos direitos de seus cidadãos — e, especialmente neste
caso, pelos direitos dos povos indígenas, que foram especialmente visados. Mas
é uma política global de Bolsonaro. P. Por que vocês
consideram que as ações de Bolsonaro em relação aos indígenas se enquadram nos
crimes passíveis de serem analisados pelo TPI? R. O TPI tem jurisdição complementar, ou seja, por vezes o
TPI rejeita a sua jurisdição, se for considerado que, no país em que foram
cometidos crimes contra a humanidade, [o Estado] demonstrou a sua capacidade, a
sua disponibilidade para instaurar um inquérito. Na denúncia, nós demonstramos,
de forma clara, sem qualquer ambiguidade, que as consequências desta cínica
política de Bolsonaro privaram sem reservas todas estas comunidades [indígenas]
de terem acesso a um juiz, para obter de qualquer juiz qualquer tipo de
inquérito ou reconhecimento da responsabilidade dos seus crimes. Esta é a
aplicação do princípio da subsidiariedade. Como o TPI tem jurisdição complementar, fizemos um esforço
especial para demonstrar que Bolsonaro sistematicamente, como conseqüência de
sua política, para assegurar, executar sua política com total impunidade, tomou
algumas medidas contra um juiz, por multiplicação de recursos, etc, para
garantir que nenhuma investigação fosse possível no Brasil. P. Você pode explicar
um pouco mais o porquê acreditam que a Justiça brasileira não está sendo
efetiva nesse caso? R. Nós temos fatos documentados de que os juízes brasileiros
não tiveram a capacidade de responder efetivamente aos direitos dessas
comunidades de ter acesso a um juiz ou de obter quaisquer inquéritos
eficientes. Sabemos que tem havido algumas tentativas, sabemos que já foram
feitas algumas denúncias. Mas Bolsonaro já demonstrou vontade de controlar
juízes, de controlar a justiça. Isso tem sido denunciado no Brasil por muitos
observadores. O fato dele recusar o princípio da justiça independente é um
elemento, entre outros, que tem consequências sobre o porquê dessas comunidades
estarem todas privadas de justiça. P. A denúncia está
sendo feita em nome de Raoni e de Almir Suruí. Como surgiu essa interlocução? R.Eu fui convidado para um workshop em Bordeaux, em setembro
de 2019. Lá, o [cacique] Raoni me perguntou que tipo de denúncia internacional
poderia ser feita. Nós tivemos algumas reuniões com membros da equipe de Raoni
em Paris. Também tivemos a oportunidade de ter uma longa conversa com o Raoni
por Zoom. E esse foi o começo da história, dessa aventura coletiva.
E o Raoni, considerando a explicação da minha proposta, me
deu suas instruções sobre o que apresentar ao TPI. Foi o que fiz com minha
equipe. Para mim, é uma grande responsabilidade. Espero merecer a confiança
dele e a confiança de sua comunidade. O que estamos fazendo, claro, é em nome
dos dois dois caciques. Mas é também para todas as outras comunidades e também
para a humanidade. É consenso dizer que a Amazônia e suas comunidades são
tesouros públicos de toda a humanidade, de geração em geração. El País
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