02/04/2023
Dia Mundial de Conscientização do Autismo: Inclusão no ensino superior é desafio para autistas
BRASÍLIA, DF - O universitário Silvano Furtado da Costa e
Silva, de 23 anos, estava no 8º período da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP), quando teve seu diagnóstico de autismo, em 2020. Neste
domingo (2), é lembrado o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo. “No primeiro ano da pandemia, eu tive várias questões
psicológicas, passei por alguns tratamento e tive meu diagnóstico de autismo.
Fiquei um pouco vulnerável. Em uma reunião aberta entre os alunos e a
representação discente da faculdade, eu disse à época que eu não pisaria nesse
prédio novamente depois de pegar meu
diploma, caso a faculdade não mudasse a forma como lida com seus alunos
neurodivergentes.” A manifestação de Silvano fez com que ele fosse convidado a
integrar a representação dos estudantes. “Assim, começamos a desenhar uma
política de avaliações alternativas de acessibilidades pedagógicas dentro do
Largo de São Francisco [local da faculdade]”, contou. O universitário colaborou na construção da Política de
Acessibilidade Pedagógica (PAP) da Faculdade de Direito da USP, uma das mais
antigas e tradicionais do Brasil. A PAP, implantada em agosto de 2022, é
direcionada aos alunos diagnosticados com transtornos globais do
desenvolvimento, como o transtorno do espectro autista (TEA). “A São Francisco é a única faculdade pública do Brasil a ter
uma política assim, o que por si só é genial, pois tais normas, se cumpridas,
dão conta de realizar a inclusão. Mas, ao meu ver, o grande mérito dessa
política foi ter atuado contra a invisibilização de pessoas autistas no mundo
acadêmico e colocado o debate na mesa acerca da neurodiversidade”, aponta
Guilherme de Almeida, presidente da Associação Nacional para Inclusão das
Pessoas Autistas (Ania/BR). Para o pesquisador, a Política de Acessibilidade Pedagógica
é um potente regulamento em prol da garantia de direitos das pessoas
neurodivergentes. Guilherme lembra que a PAP representa o cumprimento da Lei
Brasileira de Inclusão, da Constituição Federal de 1988, e dos tratados
internacionais de que o Brasil é signatário, em especial a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova York. Segundo dados mais recentes do Censo da Educação Superior,
de 2021, no Brasil, estão matriculados em cursos de graduação presenciais e a
distância 4.018 pessoas com transtorno
global do desenvolvimento (TGD). O transtorno do espectro autista (TEA) é um
dos cinco tipos do TGD. Sendo assim, todos aqueles que têm algum grau de TEA
possuem um TGD. O censo é realizado anualmente pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), instituição vinculada
ao Ministério da Educação. Política “A Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, como sendo
a primeira faculdade do Brasil, teria que, em termos de tradição, mostrar que é
possível quebrar o ‘antiquadrismo’. Então começamos a trabalhar”, relembra
Silvano. A PAP estabelece que os alunos que necessitem de atendimento
pedagógico diferenciado poderão solicitar previamente adaptações de provas e
demais atividades avaliativas e tempo adicional, local reservado ou assistência
para realização das provas. Considerando as legislações brasileiras de
inclusão, a política visa “superar limitações ordinárias e promover adaptações
razoáveis destinadas a garantir condições de desempenho acadêmico”. Para Silvano, a política é um dos passos para a inclusão das
pessoas com o espectro autista. “É um elemento de permanência, existem outros,
como o elemento avaliativo, que é necessário para terminar o curso. Mas eu
creio que existem outras iniciativas que a gente ainda precisa lidar, por
exemplo, o relacionamento discente. A gente sempre fala da relação
professor-aluno, que é uma relação de poder, que pode ser conflituosa, mas
existem conflitos horizontais entre os alunos, como o bullying, que para
pessoas autistas é algo complicado, que nos atinge”, explica. Para ele, a maior barreira ainda são as atitudes das pessoas
com os autistas. “Não são barreiras de engenharia. Dependem de mudanças de
atitudes, as pessoas têm mais dificuldades de mudar atitudes do que o formato
de um prédio”, acrescenta. Silvano tem esperança de que as gerações futuras
possam ser, de fato, incluídas no ensino superior. “Espero que o número que a USP como um todo tem, de tão
poucas pessoas com deficiência, se reverta em uma mudança real, que pessoas
ocupem essas cadeiras e se sintam confortáveis em ocupar essas cadeiras, em ir
à aula, em falar, em ser elas mesmas, sem o medo de serem ridicularizadas, sem
o medo de serem tratadas como seres humanos de baixa qualidade, essa é uma das
minhas esperanças.” Ele ainda está indeciso em qual área do direito vai atuar
quando se formar. “Tenho duas áreas em mente, a primeira é criminologia e a
segunda é direito digital, para não abandonar essa minha aptidão com a
computação.” O universitário explica que o direito não foi sua primeira
opção. “Estava no meio do processo seletivo do Consulado do Japão para tentar
ciências da computação na Universidade Imperial de Tóquio até que eu decidi que
não queria mais o curso, nem ir para Tóquio. Decidi que queria direito e como é
um curso que radica muito nacionalmente, acabei optando pela USP como primeira
e a melhor opção”, conta. Inclusão com
humanização “A grande beleza de se discutir inclusão é que você não pode
fazer isso de modo sectarista, identitário, afinal só se inclui envolvendo o
todo”, afirma Guilherme de Almeida, presidente da Ania/BR, que também é
pesquisador de educação inclusiva na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Ele tem 40 anos e se descobriu autista aos 37. Guilherme explica que existem várias dificuldades que as
pessoas autistas enfrentam para acessar o ensino superior. “A começar pelo vestibular que não avalia de forma adequada
e justa as habilidades e os conhecimentos dos alunos, pois se baseia em um
único teste padronizado. A forma como autistas pensam e processam informação é
absolutamente diversa do modo como pessoas não autistas o fazem.” Outra barreira, segundo o presidente, “está em uma ideia
contida na famosa frase ‘mas se você chegou até aqui, você não precisa de
adequações’". "Para mim, isso supera a ignorância e beira o
criminoso. Qualquer professor universitário, com o mínimo de sensibilidade,
compreende o quão desafiadora uma faculdade pode ser para qualquer pessoa.
Ansiedade e depressão, transtornos alimentares, abuso de substâncias, síndrome
de Burnout são apenas alguns exemplos da realidade nas universidades. Se isso
já é complicadíssimo para qualquer pessoa, para indivíduos autistas tem um
potencial destrutivo muito maior, vale lembrar que o suicídio é a maior causa
de morte não natural entre pessoas autistas”, alerta. Para o representante da Ania/BR, falta humanização para que
haja, de fato, a inclusão de pessoas com deficiência no ensino superior. “A
inclusão visa criar um ambiente onde todas as pessoas possam participar e se
sentir bem-vindas. Para haver inclusão, falta humanização, falta comprometimento
no desenvolvimento ético e social, falta partilha, falta união. Acessibilidade
é ferramenta, inclusão é ‘inédito viável’, como queria Paulo Freire.” Direito à diferença Durante a última semana, a Faculdade de Direito da USP
sediou o 2º Simpósio Internacional de Inclusão no Ensino Superior - O Direito à
Diferença. Promovido pela Ania/BR, o evento reuniu especialistas de
universidades de diversos países e pessoas com deficiência em mesas-redondas e
palestras sobre o autismo e sua relação com a sociedade brasileira. Presente no evento, o professor César Nunes, titular de
filosofia e educação na Faculdade de Educação da Unicamp, falou sobre a
pedagogia humanizadora como instrumento de inclusão das diferenças. “Os
autistas não encontram no conjunto das pessoas com deficiência nenhuma política
especial de acesso e de garantia da qualidade humanizada e de permanência na
instituição”, afirmou o professor, em entrevista à Agência Brasil. Ele explica que no ensino superior brasileiro há dificuldade
de acesso para as pessoas autistas e, de modo geral, para as pessoas com
deficiência. “O acesso é diferente às universidades públicas e universidades
particulares. As universidades públicas mantêm uma tradição um pouco mais
rigorosa e muitas vezes é extremamente excludente, e as universidades
particulares, com suas diferenças, têm um modelo de ingresso mais voltado para
a questão econômica, comercial, flexibilizando o processo seletivo, mas ao
mesmo tempo, mercenalizando o processo formativo.” Para Nunes, a sociedade brasileira precisa superar as marcas
e os preconceitos históricos. “Quando a sociedade for mais democrática e
acessível, as instituições educacionais e escolares também o serão. As
políticas públicas de acesso ao ensino superior deverão apropriar-se das características
jurídicas, filosóficas, pedagógicas e democráticas da Constituição brasileira
para promover uma educação onde haja espaço e lugar para todos. E as políticas
de inclusão deverão considerar a especificidade da condição do autista”, opina.
O professor explica que a pedagogia, por sua natureza, já é
um instrumento de inclusão das diferenças. “A pedagogia é uma ciência múltipla
que trabalha as diversas dimensões do ato educativo, ela já deveria ser
inclusiva, porque a pedagogia consiste em buscar compreender a condição humana,
que é diversa em cada ser humano, e a partir da diferença, da diversidade,
promover a inclusão e a permanência digna e humanamente qualificada de todos”,
afirma o especialista. Ludmilla Souza/Juliana Andrade - Agência Brasil, com fotos: Arquivo Pessoal
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